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O conflito que você não vê
O conflito que você não vê

O conflito que você não vê

Você já tentou se conectar com alguém e, mesmo sem motivo claro, algo dentro de você puxou o freio de mão?
Você sorri, responde, interage, mas no fundo está sempre com um pé fora.
Pronto para sair. Pronto para não precisar de ninguém.
E pior: convencido de que isso é liberdade. Pode até soar nobre, mas é prisão com vista panorâmica.

Não se culpe ainda. Isso é mais comum do que parece. 

Existe uma teoria dentro da psicologia que pode explicar esse fenômeno com precisão desconcertante.
Alfred Adler, um dos grandes nomes da psicologia individual, sugeria que desenvolvemos certos “modelos mentais” com base nas experiências que tivemo, especialmente aquelas em que nos sentimos feridos, traídos ou desamparados.
Com isso, aprendemos a ver o mundo (e as pessoas) não como ele é, mas como nossa dor nos ensinou a enxergar.

Chamamos isso de Teoria dos Adversários.
Uma lente mental na qual, por autoproteção, passamos a identificar o outro como uma possível ameaça, mesmo quando a realidade não confirma esse risco.
Um mecanismo que transforma o campo afetivo em campo de batalha.
E nos coloca na guerra antes mesmo de checar se há inimigo.

Funciona mais ou menos assim:
Você conhece alguém incrível. Essa pessoa te ouve, te entende, te olha como se te enxergasse além do que você mesmo vê.
E isso, ao invés de ser o paraíso que seu lado carente sempre sonhou, aciona o modo de alerta da sua mente antiga.
Você começa a interpretar pausas como rejeição, espaço como afastamento e silêncio como crítica.
Tudo vira sinal de ameaça.
Você saca a espada emocional, mas jura que é só uma tesoura de cortar laço frouxo. Tá “se protegendo”.

O que você talvez não perceba é que essa guerra já começou muito antes dessa pessoa aparecer.
Essa batalha emocional é um cabo de guerra interno.
De um lado, um desejo profundo de ser visto, acolhido, compreendido.
Do outro, o pavor de se entregar demais e reviver antigas feridas.
Então você entrega pedaços … só os que não doem.
E cobra do outro uma presença que nem você ousa oferecer.

Essa dualidade tem consequências sérias, ainda que camufladas de independência ou frieza estratégica.

Vamos dar nome aos efeitos disso:

Efeito da antecipação hostil.
Você interpreta qualquer ambiguidade como ameaça.
A pessoa demorou a responder? Frieza.
Mudou o tom? Rejeição.
Discordou? Crítica disfarçada.
O afeto começa a passar pelo detector de mentiras da sua insegurança.
E claro, qualquer falha vira confirmação de que você estava certo em se proteger.

Efeito da auto-suficiência defensiva.
Você começa a convencer a si mesmo de que não precisa de ninguém.
Prefere se ocupar, se distrair, se isolar.
E quando alguém oferece ajuda, você recusa com um sorriso irônico. “Prefiro resolver sozinho.”
Mas o vazio que cresce no peito não é de falta de competência, é de falta de conexão.

Efeito da reciprocidade contida.
Você até se entrega, mas com rodapé, asterisco e cláusula de rescisão emocional.
Suas conversas são cuidadosamente editadas, sua presença é gerida com cautela.
Você dosa afeto como quem administra remédio controlado.
Só que o outro sente.
Sente que está dançando com alguém que nunca tira os sapatos.

Efeito da oportunidade perdida.
A pessoa que poderia ser parceria, cura, espelho… vai embora.
Não por falta de vontade.
Mas porque lutar contra as suas trincheiras exige mais fôlego do que alguém pode prometer ter.
Você assiste ao afastamento com um certo alívio, afinal, isso confirma que sua teoria estava certa.
Mas uma parte de você morre um pouco mais.

A ironia?
Essa parte que morre é justamente a que queria viver em conexão.

Adler nos alertava: quando nosso senso de pertencimento é distorcido pela dor, passamos a nos afastar antes de qualquer sinal de aproximação.
Construímos fortalezas emocionais que impedem qualquer possibilidade de laço real.

E aí vem a parte difícil.

O outro não é seu inimigo.
Mas sua mente, treinada por experiências passadas, o vê como tal.

Essa programação precisa ser desinstalada.
Não com força bruta, mas com consciência.

Comece assim:
Pare. Respire.
Repare se o que você está sentindo é sobre a situação real ou sobre uma lembrança disfarçada de realidade.

Teste pequenas aberturas.
Não é sobre se expor por completo.
É sobre experimentar o risco calculado de confiar,  mesmo que só um pouco.

Observe o outro com mais isenção.
Pergunte-se: essa pessoa realmente me feriu?
Ou estou projetando nela dores que não são dela?

Entenda: vulnerabilidade seletiva não é ingenuidade.
É inteligência emocional.
É oferecer acesso gradual conforme o outro demonstra que merece.

E se você chegou até aqui, aqui vai a verdade sem anestesia:
Você pode continuar se defendendo de gente que não quer te atacar.
Pode seguir oferecendo migalhas emocionais com medo de se entregar.
Pode manter esse teatro de “não preciso de ninguém”.

Mas um dia, talvez em um silêncio grande demais, ou numa noite em que nada faz sentido, vai sentir a ausência de algo que você nunca deixou florescer: conexão genuína.

A boa notícia?

Você pode mudar esse roteiro.
Abrir-se não é sinal de fraqueza.
É sinal de coragem.
E não, não é sobre abrir-se pra todo mundo.
É sobre reconhecer quem já provou que não é adversário.

Você não precisa vencer essa guerra.
Precisa apenas perceber que ela acabou.
E que talvez… nunca tenha começado.

Cris

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